quarta-feira, 31 de agosto de 2011

O USO DE BRINQUEDOS E JOGOS NA INTERVENÇÃO PSICOPEDAGÓGICA DE CRIANÇAS COM NECESSIDADES ESPECIAIS

O USO DE BRINQUEDOS E JOGOS NA INTERVENÇÃO PSICOPEDAGÓGICA DE CRIANÇAS COM NECESSIDADES ESPECIAIS
Para todos aqueles que trabalham com Psicopedagogia e Educação Especial é bastante comum a vivência de situações em que é preciso estabelecer a intervenção psicopedagógica em função das necessidades especiais da criança. Os brinquedos, jogos e materiais pedagógicos desempenham neste momento um papel nuclear.
Este trabalho visa discutir alguns aspectos fundamentais na estruturação do processo psicopedagógico tendo em vista a construção do conhecimento e do saber por parte da criança através do uso de brinquedos e jogos.
Tradicionalmente, este processo tem sido abordado a partir de uma ótica redutora que atribui a uma ou duas variáveis a responsabilidade pelo processo de aprendizagem da criança. É bastante comum os professores se referirem à situação familiar como a grande responsável pelos problemas apresentados pela criança: "Os pais de fulano se separaram!". Esta postura introduz um privilegiamento da variável psicológica, como se, através dela, fosse possível entender o que ocorre com a criança.
A intervenção psicopedagóglca veio introduzir uma contribuição mais rica no enfoque pedagógico. O processo de aprendizagem da criança é compreendido como um processo pluricausal, abrangente, implicando componentes de vários eixos de estruturação: afetivos, cognitivos, motores, sociais, econômicos, políticos etc. A causa do processo de aprendizagem, bem como das dificuldades de aprendizagem, deixa de ser localizada somente no aluno e no professor e passa a ser vista como um processo maior com inúmeras variáveis que precisam ser apreendidas com bastante cuidado pelo professor e psicopedagogo.
Um outro problema bastante grave a ser ressaltado é uma concepção redutora do modelo piagetiano que tem sido adotada em boa parte dos cursos de Pedagogia, no qual são privilegiadas apenas as colocações iniciais da sua obra. Ela tem direcionado os professores a conceberem o processo de ensino-aprendizagem de uma maneira estática, universalista e atemporal. Com isto ficam de fora as contribuições mais importantes de Piaget em relação aos processos de equilibração e reequilibração das estruturas cognitivas.


O educador já não se defronta com um processo linear de crescimento e
desenvolvimento, tanto no desenvolvimento intrínseco como na expressão,
mas com um realizar-se descontínuo no qual fases e períodos se entrecruzam,
se opõem dialeticamente, oposições de que resulta uma nova estruturação. 
PARAGENS (sic), ACELERAÇÕES, SALTOS BRUSCOS, SÃO A EXPRESSÃO
FORMAL.  Isto altera completamente o panorama da pedagogia graduada: se o
desenvolvimento não é contínuo e ininterruptamente acelerado e progressivo, como
se lhe adequará uma educação regulada por grandes períodos de desenvolvimento? 
Como pretender apreender a instabilidade do desenvolvimento pela estabilidade dum
processo educativo que se mede por anos?  Os fins da pedagogia não deveriam
apontar para o homem futuro, o que realmente será permanente e atuante, e não
para as etapas da idade evolutiva? (Merani, 1977: 91).

Esta visão aponta um deslocamento de uma vertente universalista atemporal para uma vertente particularista temporal. Kohl revela alguns dos aspectos fundamentais deste processo:


O cérebro, no entanto, não é um sistema de funções fixas e imutáveis, mas um
sistema aberto, de grande plasticidade, cuja estrutura e modos de funcionamento
são moldados ao longo da história da espécie e do desenvolvimento individual. 
Dadas as imensas possibilidades de realização humana, essa plasticidade é
essencial: o cérebro pode servir a novas funções, criadas na história do homem,
sem que sejam necessárias transformações no órgão físico.  O homem transfor-
ma-se de biológico em sócio-histórico, num processo em que a cultura é parte
essencial da constituição da natureza humana.  NÃO PODEMOS PENSAR O
DESENVOLVIMENTO PSlCOLÓGlCO COMO UM PROCESSO ABSTRATO,
DESCONTEXTUALIZADO, UNIVERSAL: O FUNCIONAMENTO PSlCOLÓGlCO, PARTICULARMENTE NO
QUE SE REFERE ÀS FUNÇÕES PSICOLÓGICAS SUPERIORES, TIPICAMENTE
HUMANAS, ESTÁ BASEADO FORTEMENTE NOS MODOS CULTURALMENTE
CONSTRUÍDOS DE ORDENAR O REAL (Kohl, 1993: 24).

O fundamental é perceber o aluno em toda a sua singularidade, captá-lo em toda a sua especificidade, em um programa direcionado a atender as suas necessidades especiais. É a percepção desta singularidade que vai comandar o processo e não um modelo universal de desenvolvimento. Isto porque o uso do modelo universalista camufla normalmente uma concepção preestabelecida do processo de desenvolvimento do sujeito. Na intervenção psicopedagóglca deve-se evitar as chamadas "profecias auto-realizadoras", isto é, prognósticos que o professor lança a respeito do processo de desenvolvimento de seu aluno sem levar em consideração o seu desempenho.
É preciso que o professor ou pslcopedagogo também altere a sua forma de conceber o processo de ensino-aprendizagem. Ele não é um processo linear e contínuo que se encaminha numa única direção, mas, sim, multifacetado, apresentando paradas, saltos, transformações bruscas etc. O processo de ensino-aprendizagem inclui também a não-aprendizagem. Ou seja, a não-aprendizagem não é uma exceção dentro do processo de ensino-aprendizagem, mas se encontra estreitamente vinculada a ele. O aluno (aprendente, em termos de psicopedagogia) pode se recusar a aprender em um determinado momento. O chamado fracasso escolar não é um processo excepcional que ocorre no sentido contrário ao processo de ensino-aprendizagem. Constitui, sim, exatamente a outra face da mesma moeda, o seu lado inverso. O saber e o não-saber estão estreitamente vinculados. O não-saber se tece continuamente com o saber. Com isto queremos dizer que o processo de ensino-aprendizagem, do ponto de vista pslcopedagógico, apresenta sempre uma face dupla: de um lado a aprendizagem e do outro a não-aprendizagem.


O desejo de saber faz um par dialético com o desejo de não-saber.  O jogo do
saber-não saber, conhecer-desconhecer e suas diferentes articulações, circulações
e mobilidades, próprias de todo ser humano ou seus particulares nós e travas
presentes no sintoma, é o que nós tratamos de decifrar no diagnóstico
(Fernandez, 1991: 39).

O uso dos brinquedos, jogos e materiais pedagógicos e as estruturas de alienação no saber
A Psicopedagogia, com base na Psicanálise, revela que o conhecimento e o saber não são apreendidos pelo sujeito de forma neutra. Dentro do sujeito há uma luta entre o desejo de saber e o desejo de não-saber. Este processo acaba por estabelecer para o sujeito determinadas posições a priori da assimilação e incorporação de quaisquer informações e/ou processos formativos. Elas se refletem tanto no plano consciente quanto inconsciente. Diante do uso de brinquedos, jogos e materiais pedagógicos o sujeito pode se direcionar tanto para o desejo de saber quanto para o desejo de não-saber. No primeiro caso, através do desejo de saber o sujeito tece o saber. No segundo caso, paralisa o processo formando as chamadas estruturas de alienação no saber (Mrech, 1989: 38). O termo foi cunhado por Roland Barthes em O rumor da língua, para designar um fenômeno novo que ocorreria na cultura:


a meu ver, existe uma antinomia profunda e irredutível entre a literatura
como prática e a literatura como ensino.  Esta antinomia é grave porque
se liga ao problema que é talvez hoje o mais escaldante, e que é o
problema da transmissão do saber; é aqui que reside sem dúvida o problema
fundamental da alienação, uma vez que, se as grandes estruturas de alienação
econômica foram postas a nu, as estruturas de alienação no saber não o
foram (Barthes, 1987: 43).

É bastante comum para todos aqueles que trabalham com Prática de Ensino e Didática vivenciarem uma situação onde o aluno e os professores já formados assinalam que a universidade tende a prepará-los inadequadamente para a sua prática futura. Poderíamos pensar que se trata apenas de uma transmissão inadequada da universidade, apenas uma questão de teoria x prática.
Na verdade, a situação é bem mais complexa:


Há uma espécie de "círculo cujo centro está em toda a parte e em parte
alguma".  O poder simbólico é, com efeito esse poder invisível, o qual só
pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber
que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem.  A cultura que une
(instrumento de comunicação) é também a cultura que separa (instrumento
de distinção) (Bourdieu, 1989: I I).

Os símbolos geram as estruturas do saber, podendo posteriormente se transformar em estruturas de alienação no saber.
Os mesmos símbolos ensinados para estabelecer comunicação podem levar à paralisação e à segmentação do saber. A mesma simbolização pode ter um caminho tanto de aproximação quanto de afastamento do saber e das pessoas. Tentando delimitar melhor este fenômeno em nossa tese de doutoramento, utilizando a terminologia de Roland Barthes, resolvemos efetuar um estudo mais aprofundado das estruturas de alienação no saber.
As estruturas de alienação no saber se apresentam tanto no plano dos idioletos (linguagem grupal e/ou individual) como no da língua (linguagem social). Em ambos a sua característica maior é a coisificação ou reificação da linguagem. E estabelecido, através delas, um processo de alienação de tal ordem que é como se o saber tivesse tomado forma e assumisse uma vida independente do pensamento mais atualizado dos sujeitos. No plano do idioleto, na sua família, a criança pode aprender certas palavras, que crê sejam comuns a todos os sujeitos. Ela pode utilizar o fonema "Bu" e a mãe entender que com isto ela está pedindo um copo de água. No entanto, se ela o empregar para pedir água fora de casa, dificilmente as pessoas poderão compreendê-la. Ela ficou em um idioleto, em uma fala reificada, particularizada, que exclui outras possibilidades de articulação e significações. O mesmo processo ocorre também no plano social, quando a linguagem chega a adquirir uma generalização tão ampla, que pode perder o sentido e a precisão. Assim, ao se falar que uma coisa é superlegal pode se estar frisando o fato de que é uma coisa ótima. No entanto, se essa palavra for freqüentemente utilizada em múltiplas ocasiões, as pessoas poderão ficar em dúvida se o sujeito sabe o que é realmente uma coisa super. Neste caso, a palavra super entrou no lugar do advérbio de quantidade muito. O sentido muito legal ficou camuflado. A palavra super, que se referia originariamente a um contexto superlativo, perdeu o seu eixo original de inserção, tomando a aparência de um advérbio de quantidade.
Em decorrência, pode-se dizer que nas estruturas de alienação no saber é como se os sujeitos não se dessem conta do que estão fazendo e funcionassem em termos de uma elaboração inconsciente, em um nível automático de conceitualização. Pierre Bourdleu designa este processo de "instrumentos inconscientes de construção":


Passo aos conceitos, às palavras, aos métodos que a profissão emprega para
falar do mundo social e para o pensar.  A linguagem levanta um problema
particularmente dramático para o sociólogo: ela é, com efeito, um enorme depósito
de pré-construções naturalizadas, portanto, ignoradas como tal, que funcionam
como instrumentos inconscientes de construção (Bourdieu, 1987: 39).

No caso da Pedagogia e da Psicopedagogia, as estruturas de alienação no saber, como instrumentos inconscientes de construção, atuam relficando os lugares do discurso pedagógico: o lugar do professor e o lugar do aluno. Ou seja, elas são guias de ação, formas prévias de conceber como o professor e o aluno deverão agir e se comportar. Elas se encontram fundamentalmente no âmbito da própria linguagem, sendo compostas por hábitos, repetições, estereótipos, cláusulas obrigatórias e palavras-chaves, estruturando o pensamento dos sujeitos.
Os símbolos introduzem no sujeito um processo de uso duplo tanto de aproximação quanto de distanciamento das coisas e das pessoas. Os símbolos tendem a formar dentro do sujeito verdadeiras cadeias simbólicas alienadas: as estruturas de alienação no saber. O seu papel fundamental é impedir um contato mais estreito entre os sujeitos ou dos sujeitos com o saber.
Ou seja, elas são estruturas defensivas que, em um determinado momento, são utilizadas pelo sujeito ou pela sociedade para introduzir um distanciamento entre as pessoas ou em relação a um saber novo. Elas revelam formas prefixadas de lidar com o conhecimento e o saber. Formas acionadas pelo desejo de não-saber para que o sujeito, o grupo ou a sociedade se paralisem, impedindo-se de ir para a frente e de conhecer mais. Alícia Fernandez concebe estas estruturas como verdadeiros "clichês", isto é, formas estereotipadas de saber:


Para pensar novas idéias temos que desarmar nossas idéias feitas e misturar
as peças, assim como um tipógrafo ver-se-á obrigado a desarmar os clichês,
se deseja imprimir um texto no novo idioma (Fernandez, 1991: 23).

As estruturas de alienação no saber se dividem em dois tipos básicos: as estruturas sociais de alienação no saber e as estruturas individuais de alienação no saber.
As estruturas sociais de alienação no saber são sistemas simbólicos utilizados pela sociedade para fornecer um código geral em que os sujeitos encontrarão sempre guias de ação predeterminados. Estas formas alienadas não surgem ao acaso. Elas são os resíduos das estruturas de saber que, ao longo do tempo, perderam o seu potencial gerador de conhecimento, tornando-se formas inadequadas e preconcebidas de apreender a chamada realidade concreta. Elas são formas de saber que perderam a capacidade de possibilitar uma comunicação efetiva entre os sujeitos. Podemos associá-las aos processos vinculados ao cotidiano das pessoas, principalmente ao saber-fazer das pessoas. Por exemplo, o professor, ao longo da sua prática pedagógica, aprendeu a dar aula de um determinado modo. Aos poucos, este processo transformou-se em um hábito, passando a estruturar a sua prática diária. Como Chico Buarque de Holanda costuma cantar: "Todo dia ela faz tudo sempre igual".
As estruturas de alienação no saber são modos de ação socialmente determinados (hábitos, repetições, estereótipos, cláusulas obrigatórias e palavras-chave) que estruturam o que escutar, o que dizer e o que fazer em um determinado momento. O mesmo conteúdo que o professor aprendeu na universidade para formá-lo e informá-lo pode, em outro momento, desinformá-lo e colidir com as suas novas necessidades de atuação docente.
Quando se assinala a importância da constante reciclagem do professor não é porque as teorias simplesmente mudaram, mas porque os símbolos se reificaram impedindo o professor de estabelecer um melhor contato com os seus alunos. As estruturas de alienação no saber enquanto sistemas simbólicos acabam por se constituir em um sistema de crenças a respeito do que-fazer pedagógico, impregnando de forma irreversível o processo de atuação do professor.
O que faz o poder das palavras e das palavras de ordem, poder de manter a ordem ou de a subverter, é a crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia, crença cuja produção não é da competência das palavras. A destruição deste poder de imposição simbólico radicado no desconhecimento supõe a tomada de consciência. do arbitrário, quer dizer, a revelação da verdade objetiva e o aniquilamento da crença (Bourdieu, 1987: 15).
Aquilo que o professor aprendeu durante o período em que era estudante passará a nortear a sua forma de ação docente. Gradativamente, o que eram guias de ação eficazes no princípio, aos poucos se transformam em formas estereotipadas de enxergar os seus alunos. Formas que o levam a estabelecer certos hábitos, certas repetições, certas palavras-chaves etc. Um outro nome que caberia às estruturas sociais de alienação no saber são as formas prefixadas do cotidiano escolar. Formas que engolem as relações sociais tendendo a despersonallzá-las, isto é, esvaziando-as de um contato mais aprofundado entre os sujeitos.
O mesmo processo ocorre com o aluno. Ele passa a lidar com o professor ou com a situação escolar de uma forma preconcebida. O professor passa a ter uma imagem fixa, estabelecida a partir da sua interação com a classe, ou através de situações passadas. Esta forma estereotipada passa a reger todo o contato do aluno com o professor e vice-versa.
Além do efeito deletério nas relações sociais na escola, as estruturas de alienação no saber tendem a gerar outro tipo de processo de alienação: o das estruturas individuais de alienação no saber. Da mesma forma que as estruturas sociais de alienação no saber, elas são compostas por hábitos, repetições, estereótipos, cláusulas obrigatórias e palavras-chave. Em termos sociológicos, pode-se dizer que, enquanto as estruturas sociais de alienação no saber se referem ao plano macroestrutural, as estruturas individuais de alienação no saber se referem ao plano microestrutural. As primeiras, mais abrangentes, delineiam a forma de ação; as segundas, mais específicas e particularizadas, o conteúdo. As estruturas individuais de alienação no saber refletem as formas estabelecidas por cada sujeito para se defender do saber. Lacan esboça alguns destes aspectos:


Neste ensino, assim como numa análise, lidamos com resistências. As resistên-
cias têm sempre sua sede, nos ensina a análise, no eu.  O que corresponde ao
eu é o que por vezes chamo dos preconceitos que comporta todo saber, e que
cada um de nós carrega individualmente.  Trata-se de algo que inclui o que sabe-
mos ou cremos saber - pois saber é sempre, por algum lado, crer saber.
Por isto, quando uma perspectiva nova lhes é trazida de uma maneira descentrada
com relação à experiência de vocês, sempre se opera um movimento pelo qual vocês
tentam reencontrar o equilíbrio, o centro habitual do ponto de vista de vocês - sinal
daquilo que lhes explico, e que se chama resistência.  Seria preciso, ao contrário,
que se abrissem às noções surgidas de uma experiência outra e tirassem proveito
(Lacan, 1985: 58).

As estruturas de alienação no saber chegam a atingir até certos contextos, em que se acreditaria tradicionalmente haver apenas atuações espontâneas, tais como o uso dos brinquedos e materiais pedagógicos. Antes mesmo de entrar em contato com o material proposto, o aluno utiliza as chamadas estruturas de alienação no saber. Estas têm uma origem dupla: social e individual. No primeiro caso, refletem os sistemas simbólicos onde os símbolos foram inicialmente cunhados: a família e a escola. No segundo caso, as estruturas de alienação no saber refletem o próprio processo de construção dos símbolos pelo sujeito, ou seja, os recortes que o sujeito introduz nos conteúdos que recebeu da sua família e da sua escola.
É importante que o professor perceba que a forma como a criança reage ao objeto não é simplesmente um produto do processo da sua interação com o objeto no momento, mas um produto de sua história pessoal e social. Ao ser apresentada a um material pedagógico ou brinquedo, a criança pode bater ou jogar o material no chão, mordê-lo, olhá-lo fixamente, perguntar a uma outra pessoa de quem é o material etc. Isso porque as estruturas individuais de alienação no saber refletem verdadeiros maneirismos que antecedem o próprio processo de ensino-aprendizagem.
Com as chamadas crianças normais, este processo de transição é muito rápido e pouco percebido. Com as chamadas crianças excepcionais, ele se revela mais claramente, refletindo o processo duplo de implantação da aprendizagem: a do desejo de aprender e a do desejo de não-aprender.
Por exemplo, o professor vai trabalhar com uma criança tida como autista. No contato inicial, ele começa a desenhar algo com uma caneta em uma folha de papel. Aos poucos, a criança se desinibe e começa a desenhar também. O professor faz um bonequinha. O aluno diz que o bonequinha é ele (aluno). Em seguida, dizendo que é ele outra vez, desenha o mesmo bonequinha. O professor dá uma outra folha de papel, pedindo à criança para desenhar outra coisa. O aluno faz outra vez o mesmo bonequinha.
Querendo mudar o comportamento do aluno muito rapidamente, o professor introduz uma outra folha e um material novo - o, giz de cera. O aluno não aceita o giz de cera, preferindo a caneta. O professor insiste no desenho com o giz de cera. O aluno se retrai e se fecha, negando-se a realizar as suas atividades. Devido à estrutura individual de alienação no saber, o aluno continua preso ao objeto caneta e ao desenho do bonequinho, não tendo feito a passagem para o giz de cera e para um outro assunto. Pode-se dizer que ele ainda não se sente livre o suficiente para trabalhar sem um modelo da atuação anterior. Volta-se para o que já sabe, tentando dar conta do momento presente. Pára a cadela simbólica, apanhado em uma estrutura de alienação no saber. Só consegue desempenhar a atividade se ela for feita do modo que aprendeu inicialmente.
O professor pode acreditar que o aluno está querendo chamar a sua atenção. No entanto, o problema é bem mais sério, o aluno foi captado em uma estrutura de alienação no saber que comanda o seu processo de aprendizagem, paralisando-o em um determinado ponto. Para sair desta situação, ele precisa ser trabalhado mais aprofundadamente com o material anterior. O professor precisa atender a esta necessidade especial do aluno.
A Educação Especial e a Pslcopedagogia propiciam esta forma mais aprofundada de se trabalhar com o aluno. Elas levam em consideração as necessidades específicas de cada aluno, privilegiando-se a "escuta" do que está realmente acontecendo naquele momento. Isso porque o sistema simbólico e imaginário do aluno é único, não se devendo lidar com ele a partir de esquemas generalizadores.
No caso mencionado, o professor poderia analisar o processo da criança como uma resistência a materiais novos. Na realidade, havia um eixo estruturando esse processo aparentemente aleatório. A caneta fazia parte de um processo de estruturação do vínculo da criança com o pai. Todas as noites, antes de dormir, o pai ia ao seu quarto para contar uma história. Sendo cartunista, acabava desenhando, com a caneta, uma história para o filho.
A caneta foi o objeto transferencial que propiciou tanto o contato e o seu oposto - o distanciamento dos sujeitos, ao se constituir em uma estrutura de alienação no saber. A caneta não era um objeto qualquer. Retirá-lo rapidamente era excluir o objeto que materializava afeto para a criança, um objeto que a ligava ao pai. A caneta era o objeto gerador de afeto. A sua retirada acabou tendo como conseqüência o fechamento posterior da criança.
Em síntese, os objetos utilizados na aprendizagem não têm uma existência neutra. Eles refletem o próprio processo interior do aluno e do professor. Se o professor não souber, em algum momento, trabalhar aprofundadamente com o material introduzido, os alunos perceberão a sua postura insegura. Com isso, como assinala Mauco, ele acabará expondo, direta ou indiretamente, aos alunos, os seus próprios fantasmas:


A relação aluno-professor vai depender em larga escala do que o professor é
inconscientemente.  Com demasiada freqüência, os educadores ignoram a
importância das reações inconscientes, tanto neles como nas crianças.  Esta
ignorância surge com clareza nas situações afetivas que suscitam a expressão
dos desejos libidinais recalcados. É assim que a projeção dos fantasmas da
criança (e os do professor) pode ter naturalmente uma intensidade particular no
domínio sexual.  Durante largo tempo a Universidade viu em qualquer manifestação
sexual, por ligeira que fosse, o "Mal" por excelência.  Uma única palavra "indecente"
ou um desenho "indecente" era suficiente para justificar uma expulsão imediata.
(Mauco, 1987: 124).

Percebe-se que, no ensino, o professor não introduz um objeto qualquer. O objeto de ensino, enquanto um símbolo, carrega em seu bojo toda a história passada do aluno e do professor, podendo desencadear, em ambos, processos conscientes e inconscientes de atuação. É este sistema prévio que chamamos de estruturas de alienação no saber. É ele que precisa ser trabalhado antes mesmo de o professor e o aluno entrarem em contato com o material em si.
O uso de brinquedos, jogos e materiais pedagógicos, do ponto de vista pslcopedagógico, necessita da percepção do contexto em que se encontram inseridos. É preciso que o professor e/ou psicopedagogo identifiquem a matriz simbólica anterior do objeto, para entender melhor as necessidades e dificuldades mais imediatas dos alunos.
O uso dos brinquedos, jogos e materiais pedagógicos as estruturas de alienação no saber
Um dos aspectos mais importantes a ser levado em conta pelo professor e pelo psicopedagogo é o reconhecimento das estruturas prévias de alienação no saber que o professor e o aluno apresentam em relação ao uso de brinquedos, jogos e materiais pedagógicos. São elas que impedem o objeto seja empregado em uma gama mais rica de utilização.
Apresentamos abaixo algumas das estruturas de alienação no saber mais comuns, tradicionalmente usadas pelos professores e alunos:
1. A concepção e capacidade lúdica do professor. Um professor que não sabe e/ou não gosta de brincar dificilmente desenvolverá a capacidade lúdica dos seus alunos. Ele parte do princípio de 'que o brincar é bobagem, perda de tempo. Assim, antes de lidar com a ludicidade do aluno, é preciso que o professor desenvolva a sua própria. A capacidade lúdica do professor é um processo que precisa ser pacientemente trabalhado. Ela não é imediatamente alcançada. O professor que, não gostando de brincar, esforça-se por fazê-lo, normalmente assume postura artificial, facilmente identificada pelos alunos. A atividade proposta não anda. Em decorrência, muitas vezes os professores deduzem que brincar é uma bobagem mesmo, e que nunca deveriam ter dado essa atividade em sala de aula. A saída deste processo é um trabalho mais consistente e coerente do professor no desenvolvimento da sua atividade lúdica.
2. Os modos estereotipados do professor conceber o material apresentado. Diante de um material novo, é bastante comum o professor estabelecer, uma atitude distanciada em relação a este objeto, colocando-se como especialista e não como quem! brinca com o material. O seu olhar. é técnico, basicamente o olhar do professor ou do psicopedagogo sobre o objeto, isto é, um olhar adulto. Acontece que quem vai utilizar o objeto geralmente é uma criança ou um adolescente. Muitas vezes aí se estabelece uma incompatibilidade entre esses dois olhares.
3. As formas estereotipadas de o professor conceber o aluno. Esta estrutura de alienação no saber introduz um problema bastante sério do ponto de vista da ludicidade. A imagem que o professor tem do aluno não é o aluno. Este está em um outro lugar, tendo de ser resgatado através da fala na relação professor/aluno, pslcopedagogo/aluno. É o próprio aluno que tem de dizer quem ele é, do que gosta, com que quer brincar etc. Normalmente, este é um dos processos mais difíceis de c) professor alterar. Para muitos professores, a imagem do aluno chega a adquirir a certeza de uma crença. O professor acredita piamente que a imagem que ele tem do aluno é o próprio aluno. Ele não percebe que, sendo uma imagem, é um estereótipo, uma construção na linguagem. Em suma, não se dá conta de que a imagem do aluno é uma produção sua, uma interpretação sua de quem é este aluno. O aluno está em um outro contexto, que deve ser resgatado através da própria relação.
4. As formas estereotipadas que o aluno concebe o professor, a instituição, o material proposto. Elas podem impedir ou atrapalhar o seu contato com a instituição, com o material proposto ou com o próprio professor. Uma imagem prévia da instituição feita pelos alunos pode se antecipar à própria captação da instituição real. Uma imagem de uma escola boa ou ruim tende a se perpetuar na mente dos alunos. Da mesma forma, as imagens de bom e mau professor também se antecipam à atuação docente, determinando muitas vezes os rumos do processo de ensino-aprendizagem. Se o aluno não gosta do material proposto, é bastante comum ele rejeitá-lo, sem tentar estabelecer uma outra forma de interação.
5. As formas estereotipadas que envolvem o uso do material a ser empregado na comunidade em geral. As grandes indústrias de brinquedos e materiais pedagógicos estabelecem alguns parâmetros para o uso do material. Estes indicadores podem constituir imagens tão impactantes que acabam por desviar o professor ou o psicopedagogo de um trabalho mais aprofundado com o material. É bastante comum os pais e os especialistas (professores e psicopedagogos) tomarem a indicação das faixas etárias, colocadas nas caixas de brinquedos pelas indústrias, como verdades comprovadas. Acontece que muitas classificações partem de indicadores empíricos, não de pesquisas abrangentes com faixas de mercado estruturadas. A indústria pode ter testado em apenas um pequeno grupo de crianças o uso dos brinquedos naquela faixa etária. Os resultados encontrados são generalizados em seguida a um público maior. É a criança que deve se pronunciar a respeito do material, não as indicações vagas do fabricante. Ela usa o brinquedo para atender a uma necessidade especial do momento. Este processo lúdico é que tem que ser privilegiado, e não quaisquer preconcepções dos adultos e/ou dos fabricantes a respeito do brinquedo.
6. As formas estereotipadas que envolvem o uso do material a ser empregado. Muitas vezes o professor utiliza brinquedos, jogos e materiais pedagógicos de uma maneira redutora e rotineira. O material a ser dado para o aluno deverá ser farto e variado. O professor ou psicopedagogo poderá criar locais onde, em seu próprio ritmo de trabalho, a criança poderá escolher livremente o que quer fazer. Um dos exemplos mais eficazes desta forma de trabalho são os cantinhos de música, ciências, artes etc. bastante empregados na pré-escola.
O uso do material deverá levar em conta as necessidades especiais e a singularidade do aluno. O aluno poderá se recusar em um momento a trabalhar com o material, preferindo ficar divagando ou conversando. No ensino de I' grau é fundamental que o professor respeite este processo. As crianças chegam a trabalhar, às vezes, quatro horas seguidas em atenção contínua. Ao longo desse período, podem ter um pequeno Intervalo para se refazer, e depois voltar a prestar atenção. Isso não quer dizer que não se irá trabalhar o porquê de a criança não ter desejado lidar com o objeto. No final da atividade, o professor ou psicopedagogo pode pedir a cada criança para verbalizar livremente o que sentiu ao brincar com o material. Elas podem dizer que não queriam brincar, queriam conversar, ficar paradas etc.
O aluno poderá fazer coisas totalmente imprevistas com o material, ações que o professor ou psicopedagogo muitas vezes poderá considerar inadequadas. E preciso julgar estas ações da perspectiva da criança. Somente o aluno, a partir da sua história de vida, conhece as razões para agir daquela maneira.
Uma criança deficiente mental onde quer que fosse levava um paninho e limpava muito bem os objetos, antes de tocá-los. Posteriormente o professor velo a saber que este era o procedimento que a mãe usava rotineiramente com o seu filho. Ela limpava todos os objetos antes de passá-los à criança. Ao agir desta forma, a criança estava simplesmente imitando a mãe e cuidando de si mesma da maneira como lhe fora ensinado.
Crianças com problemas motores necessitam de materiais especialmente criados, para auxiliá-las nas atividades pedagógicas: cadeiras adaptadas, materiais específicos para a escrita etc. Principalmente com crianças portadoras de lesão cerebral, que não falam, mas que apresentam nível de compreensão normal (quadriplégicos, paraplégicos etc.), é fundamental estar atento aos indicadores sutis de cansaço do aluno. Quando a criança que não fala enrijece o corpo pode estar chegando a hora de mudar de atividade. Esta pode ser a única forma de fazer o outro sentir que ela não quer fazer o que é proposto.
Assim, o professor pode, neste momento, perguntar se ela deseja descansar ou continuar a trabalhar, uma vez que ela não consegue sozinha fazer o deslocamento de atividade e material.
O uso de brinquedos, jogos e materiais pedagógicos: um objeto estruturado ou um objeto em estruturação?
O que eram então os brinquedos, jogos e materiais pedagógicos? Eram objetos concretos apresentados aos alunos ou objetos construidos na mente da criança?


A concepção que esboçamos apresenta o material pedagógico como um objeto
construido durante o processo (ensino-aprendizagem), que se funda em três
elementos articuladores básicos: o objeto pedagógico, a matéria-prima pedagógica
e o substrato pedagógico.  Com isso queremos dizer que o material pedagógico tem
uma concretude ou essência, uma multiplicidade de imagens desta concretude e um
símbolo representativo da mesma (Mrech, 1989: 50).

A passagem do objeto concreto para o objeto construido pelo aluno nos parece fundamental. O professor pode acreditar que sua visão do objeto é a mesma do aluno. Ele não perceber que, embora a essência do objeto seja a mesma, a sua inserção se dá em um universo simbólico diferente. Para identificar o que o aluno está percebendo, é fundamental captar em que contexto simbólico e/ou imaginário o objeto do aluno se encontrar inserido.
O uso de brinquedos, jogos e materiais pedagógicos e a construção da modalidade de aprendizagem do aluno
É importante perceber o objeto em construção, para não reduzí-lo a uma leitura rasa do que pode estar acontecendo com o aluno. Este processo é fundamental, porque não é só o objeto do conhecimento e do saber que está sendo construido, mas também a modalidade de aprendizagem do aluno.
O conceito de modalidade de aprendizagem proposto por Alícia Fernandez permite que se passe do universal para o particular, do estático para o dinâmico, do concreto para o abstrato, de uma percepção do objeto pedagógico construido para um objeto pedagógico em construção. O aspecto fundamental deste processo é o modo como se dá o processo de construção do material pedagógico no interior do sujeito. A construção do material pedagógico e da modalidade de aprendizagem do aluno são processos em estruturação:


Em cada um de nós, podemos observar uma particular "modalidade de aprendiza-
gem", quer dizer, uma maneira pessoal para aproximar-se do conhecimento e para
conformar seu saber.  Tal modalidade de aprendizagem constrói-se desde o nasci-
mento, e através dela nos deparamos com a angústia inerente ao conhecer-desco-
nhecer.
A modalidade de aprendizagem é como uma matriz, um molde, um esquema de
operar que vamos utilizando nas diferentes situações de aprendizagem.  Se anali-
sarmos a modalidade de aprendizagem de uma pessoa, veremos semelhanças com
sua modalidade sexual e até com sua modalidade de relação com o dinheiro
(Fernandez, 1991: 109).

A modalidade de aprendizagem revela a forma e o conteúdo do processo de estruturação da aprendizagem do sujeito, trazendo em seu bojo a criação do material pedagógico como um objeto resultante do processo de ensino-aprendizagem. Diferentemente do modelo de aprendizagem geral e universalista, a modalidade de aprendizagem é sempre singular e específica. O material pedagógico ou objeto pedagógico construido interiormente Pelo aluno é sempre único. É através da modalidade de aprendizagem do sujeito que realmente podemos conhecer como o material introduzido pelo professor foi captado e quais são as necessidades específicas do aluno. São estas necessidades específicas que deverão nortear o nosso trabalho. João, ao entrar na sala, começa a passar a mão em todos os objetos, como se através deste processo pudesse percebê-ios melhor o objeto. A sua modalidade de aprendizagem o leva a privilegiar o tato como um processo de construção do conhecimento. Todos os objetos com os quais interage são percebidos como objetos táteis. Isso mostra que há em seu interior uma necessidade específica, que o leva a construir a sua modalidade de aprendizagem direcionada para o lado tátil do conhecimento e do saber. Ciente disso, o psicopedagogo ou professor pode estruturar as atividades propostas, ensinando as diferentes texturas dos objetos: áspero, liso, aveludado etc. Ou pode pedir para que a criança fale de suas percepções, investigando o modo como ela constrói o objeto.
O que são os brinquedos e materiais pedagógicos enquanto objetos estruturadores do conhecimento e do saber?
Primeiramente brinquedos, jogos e materiais pedagógicos não são objetos que trazem em seu bojo um saber pronto e acabado. Ao contrário, eles são objetos que trazem um saber em potencial. Este saber potencial pode ou não ser ativado pelo aluno.
Em segundo lugar, o material pedagógico não deve ser visto como um objeto estático sempre igual para todos os sujeitos. O material pedagógico é um objeto dinâmico que se altera em função da cadeia simbólica e imaginária do aluno.
Em terceiro lugar, o material pedagógico traz em seu bojo um potencial relaciona], que pode ou não desencadear relações entre as pessoas. Assim, o objeto que desencadeou relações muito positivas em uma classe pode ser o mesmo que paralisará outra.
Em quarto lugar, o material pedagógico são objetos que trazem em seu bojo uma historicidade própria. Além de portar a historicidade de cada aluno e professor, eles apresentam também a historicidade da cultura de uma dada época. Por exemplo, poderíamos pensar que a boneca da Grécia antiga apresenta em seu bojo as mesmas características simbólicas e imaginárias da boneca contemporânea. Mas será que isto é verdadeiro?
Conforme a Sociologia e a História Antiga, as bonecas gregas estavam inseridas em sociedades distintas do ponto de vista sócio-econômico. A sociedade grega era escravagista, com um lugar peculiar em relação à posição da mulher. Em Esparta, a mãe destruía os filhos que apresentavam algum tipo de deficiência. Privilegiava-se mais o vínculo da mãe com a sociedade do que com a criança. Nosso conceito de maternidade é diferente da concepção de maternidade da Grécia antiga, o que acaba afetando também a visão do objeto concreto boneca.
Quando se lida com brinquedos, jogos e materiais pedagógicos deve-se atentar a uma enorme quantidade de estruturas de alienação no saber que cercam estes objetos. É preciso que elas sejam identificadas com precisão, para que o processo de intervenção psicopedagógica se realize mais facilmente.
O uso de brinquedos, jogos e materiais pedagógicos o processo de construção da inteligência do aluno
É importante não se fazer uma leitura rasa do processo de escolarização e construção da inteligência da criança. Howard Gardner estudou a possibilidade de a criança apresentar mais de um tipo de inteligência:


(... ) Em certo sentido, ler abre o mundo.  O estudo de Scribner-Cole nos
relembra, porém, que devemos ser cuidadosos antes de supor que qualquer
forma de educação necessariamente acarreta amplas conseqüências.  E, de
fato, quando consideramos as vastas diferenças entre uma escola rural e uma
escola religiosa tradicional ou entre uma escola religiosa tradicional e uma
escola moderna, parece claro que o tipo de escola faz uma diferença intelectual
tão grande quanto o fato da escolarização em si (Gardner, 1994: 275).

Muitas vezes, ao longo da formação da modalidade de aprendizagem do sujeito penas certas faixas de inteligência foram privilegiadas. Na sociedade tradicional é bastante comum um desenvolvimento baseado nas atividades de memorização; assim como na sociedade moderna ocorre um privilegiamento do pensamento lógico-matemátlco. Por razões de ordem pessoal o aluno pode ter ficado exposto a outras faixas específicas do processo de conhecimento.
Uma criança autista que gostava de música ficou muito mais exposta a discos e fitas musicais do que uma outra que não gostava. O professor pode partir deste aspecto para a ensiná-la. Com isso, o aprendizado da música deixou de ser apenas um efeito mecânico do processo de memorização da inteligência musical para tornar-se produto de uma investigação e estruturação de outros tipos de inteligência.
Tradicionalmente se pressupõe um uso de brinquedos, materiais e jogos em que se acredita que os conhecimentos de um tipo de 'Inteligência transitem facilmente para outro. Gardner revelou que este processo não ocorre de forma natural e precisa ser desencadeado pelo professor.


(...) cada inteligência é relativamente independente das outras e que os
talentos intelectuais de um indivíduo, digamos, em música, não podem
ser inferidos a partir de suas habilidades em matemática, linguagem ou
compreensão interpessoal (Gardner, 1994: XI).

Os brinquedos, jogos e materiais pedagógicos geralmente são empregados a partir de um modelo de inteligência unidimensional que privilegia o eixo cognitivo. Estudos recentes têm revelado que as inteligências podem ser várias e não necessariamente intercambiáveis entre si. Embora a criança autista tenha uma excelente memória para a música, isto não quer dizer que o mesmo ocorra com os seus outros tipos de inteligência. A sua inteligência lingüística pode ainda não ter percebido o sentido das palavras. A sua inteligência lógico-temporal pode ainda não saber o que é passado, presente e futuro etc.
Embora o mesmo material tenha a possibilidade de ser utilizado por várias inteligências, isto não quer dizer que ele seja efetivamente empregado na prática. Ele pode ficar apenas no uso potencial. Conforme o aluno um trabalho mais específico pode ser necessário.
Do livro Jogo, Brinquedo, Brincadeira e a Educação - Cortez Editora
Bibliografia
BARTHES, Roland. O rumor da língua. Lisboa, Edições 70, 1987.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa, Dlfel, 1989.
FERNANDEZ, Alícia. A inteligência aprisionada. Porto Alegre, Artes Médicas, 1991.
GARDNER, Howard. As estruturas da mente - a teoria das inteligências múltiplas. Porto Alegre, Artes Médicas, 1994.
KOHL, Marta. Vygotsky - aprendizado e desenvolvimento um processo sócio-histórico. São Paulo, Scipione, 1993.
LACAN, Jacques. O eu na teoria e na técnica da psicanálise. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1985.
MAUCO, Georges. Psicanálise e Educação. Lisboa, Moraes Editores, 1987.
MERANI, Alberto L. Psicologia e pedagogia - as idéias de Henri Wallon. Lisboa, Editorial Notícias, 1977.
MRECH, Leny M. O espelho partido e a questão da deficiência mental moderada e severa em seu vínculo com as estruturas de alienação no saber. São Paulo, Ipusp, 1989.
MRECH, Leny M. Uma breve discussão a respeito da concretude do material pedagógico. ln: Boletim da Associação Brasileira de Psicopedagogia. Ano 6, n. 13, jun. 1987.

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